sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O ÚLTIMO ANOITECER CHUVOSO

“Não me importo com a fama de bebum acabado
Não importa o tempo que ainda falta pro fim
Soube que sai mais de uma vez carregado, e, mesmo com a chuva, eu dormi no jardim
Eu já estou acostumado a ser mal tratado por mim”

– Matanza, “O Bebum Acabado”, Odiosa Natureza Humana, 2011

NEM SE ELE QUISESSE, poderia ver o que estava acontecendo. A ladeira onde estava deitado estava quase coberta de água e ele não acordaria a tempo até ser tarde demais – isso se acordasse. O céu estava tão de um violeta tão intenso e aterrador quanto nunca antes e nunca antes havia chovido daquele jeito. Só vestia uma bermuda preta, os bolsos rasos estavam vazios e os cigarros estavam completamente destruídos, o isqueiro inutilizado. A pele branca estava sendo coberta pela água suja de barro e poeira. Onde seus calcanhares? Onde uma de suas mãos – já que a outra pousava sobre o estômago – e ouvidos? O córrego já formado estava prestes a cobrir sua tez já avermelhada e sua boca coberta pela barba escura como a noite que estava prestes a terminar, mas cuja manhã seguinte seria acinzentada. A garrafa que trouxera, apesar de seca, já havia se perdido pela correnteza. Sem nenhum sonhar e somente a escuridão.
D’outro lado do estado, seus pais rezavam, imaginando como estava e o que fazia, sua irmã estava em outro extremo do país, trabalhando por uma das muitas multinacionais terceirizadas do governo. A mãe e o pai rezavam de mãos dadas ao pé da cama pelo casal. Não somente eles, mas outros de tantas filhas e filhos que não sabiam como os seus também estavam naquele momento. A viagem fora de quase dois dias, sendo relativamente rápida pela reforma recente das rodovias. Não é porque receberam notícias assim que se chegaram é que vão ficar facilmente calmos, afinal, desde quando o mundo é mundo, pais são pais, mães são mães, e crias são crias. Alguns mais preocupados do que outros. Umas muito mais arteiras do que outras. Cidades e vidas não param. E assim como o dia dá lugar à noite, o velho, dá, de alguma forma, lugar ao novo.

A quase três mil pés de altura, eles decidiram iniciar o ataque, não podiam permitir que pousassem o avião, pois o ataque à Floresta Sagrada seria inevitável. Já sabiam que estavam sendo aguardados e que, juntos, não poderiam ser detidos por nada – muito menos pelos melhores deles também reunidos. Se haviam Ovelhas lá, junto a eles, que fosse. Eram números. A existência e a persistência de uma das últimas Florestas Sagradas era muito mais importante do que a deles, já que seus grandes números eram uma das causas de existirem tão poucas delas. Através de olhares e sinais de mãos, decidiram como e quando atacar para que tivessem o melhor rendimento possível. Não podiam permitir que eles saíssem da aeronave. Não importasse o preço.

O dia tinha tudo para ser perfeito, se o final não desse tão errado. Quando começou a chover, ele já estava lá, sentado, prestes a perder todos os sentidos. Não conseguia parar de dizer o nome dela. Os cabelos castanhos claros dela refletiam a luz de forma a causar inveja em loiras. Ela já estava com tanta raiva e tão decepcionada com suas palavras e ações que não quis nem o olhar em olhos quanto em todo – e ainda faltavam mais quatro dias para o fim do evento. Aqueles olhos tão amendoados quanto as mechas sabiam esconder raiva e frustração; ela sabia como sorrir de modo tal cândido e cativante mesmo sendo implodida internamente por uma ogiva de centenas de megatons. E ele estava tão a par disso que nem mais lhe dirigira a palavra, preferindo sumir do lugar, mesmo desconhecendo que ela – vá entender as mulheres! – o queria embaixo de seu nariz e em seu campo de visão, para ter certeza de que, mesmo enraivecida, ainda tinha certeza de que ele estava a salvo de si mesmo.
Dizem que as desgraças são covardes, pois só vêm acompanhadas. Como não convém à narrativa dizer quais se sucederam com o casal em decorrência de outras, cabe aqui dizer que ele não soube agir com a maturidade devida ao encarar as mesmas. Ele ficou sentado de costas para onde todos estavam, pensando em muito e em como fazer – sem sucesso algum, devido ao efeito do tanto de álcool que já consumira em tão pouco tempo. A maioria já nem se importava com seu estado, pois, ninguém sabia explicar convincentemente como, sempre conseguia voltar vivo das piores “bad trips”, todavia com seqüelas nada invejáveis e acreditaram que, daquela vez, não seria diferente. Algumas garotas o olhavam pelo portão. Quando começou a chover, enfim passaram a se preocupar com ele, mas o resto disse que não seria diferente, que ele dormiria bêbado na chuva, mas que voltaria inteiro no dia seguinte, como se nada houvesse acontecido.

A batalha havia sido intensa. Iniciada com gritos de guerra dentro da aeronave, alguns dos inimigos haviam sido destruídos antes de notar o que acontecera, mas não sem baixas do lado atacante. Humanos no meio do combate entre adversários desde antes destes saírem das cavernas? Baixas de guerra e nada mais do que estorvo e comida para animais de estimação. Se alguns deviam morrer para que famílias e locais milenares pudessem perdurar, que morressem aos montes! O interior dos três andares da nave já havia sido banhado em sangue de inimigos e inocentes. Não era o bom combate que ambos os lados gostavam de travar, mas, enquanto uns lutavam por sobrevivência até chegar ao local de verdadeira peleja, outros lutavam para que estes não o fizessem. Era impossível que lideres organizassem suas tropas em tal campo de batalha, era cada um por si e todos por todos, mesmo que os metamorfos fossem muito mais organizados em batalha do que os sanguessugas e apesar dos primeiros não lutarem juntos de tal modo há mais gerações do que até mesmo ábacos podem contar.

Neste momento, como já dito, nem se ele quisesse, poderia ver e sentir quando foi retirado do canal quase coberto de água e esgoto, então quase cobrindo seu rosto. Não podia sentir o calor ao seu redor quando estava nos grandes braços redondos da bombeira que o encontrara. Carros e caminhões por todos os lados. O fogo estava prestes a ser controlado devido à ajuda da chuva até então torrencial, a maior registrada nas últimas décadas. Estava amanhecendo, mas sabiam que o sol ainda iria a demorar a surgir dentre as nuvens; isto é, se o fizesse ainda aquele dia. Era um milagre alguém ter sido encontrado – e ainda respirando! Todos queriam vê-lo, muitos já com lágrimas nos olhos. Não carregava identificação alguma, todavia, pelos traços e notável falta de cuidados, concluíram ser mais um dos muitos mendigos que estava perambulando pela cidade pelos últimos tempos. Mas estava vivo, e isso era importante.
Não se sabia como e muito menos o porquê, um avião comercial de três andares havia caído no meio de uma grande cidade do interior do estado, destruindo não somente um quarteirão, mas inclusive, além de um bairro onde moravam de cerca de trinta famílias, uma escola de ensino fundamental, onde, segundo fontes confiáveis, cerca de trezentos estudantes universitários estavam alojados para o Encontro Estadual de Estudantes de Letras do ano em questão. Todos mortos com o impacto da nave no solo. Levaria muito tempo para tanto os moradores e graduandos quanto os passageiros e tripulação serem identificados. Eram tantos que não se sabia nem a quem se priorizar. Muitos dos corpos estavam completamente destruídos e seria preciso que muito fosse feito para que fossem de fato reconhecidos. Exames, investigações, entrevistas, muito. A notícia veio como um choque para o mundo inteiro. Teóricos da conspiração se reuniram como nunca antes, enchendo os fóruns da internet e bares perdidos em becos. Cultos ecumênicos e específicos foram celebrados em diversos países. Por muito, isso tornou-se o assunto principal de muitos jornais dignos de nota ou mesmo sensacionalistas. Muitas perguntas, poucas respostas. Informações divulgadas pela metade, quando eram. Ninguém sabia de nada e, em pouco tempo, até autoridades foram proibidas de falar sobre.

A missão fora um sucesso. Os inimigos que completariam a força de ataque foram interceptados, mesmo com o heróico sacrifício dos que se dispuseram a subir a bordo. Os heróis seriam lembrados devidamente após a batalha seguinte, pois os sanguessugas não deixariam de lutar por algumas baixas ainda que muito importantes, estavam determinados a vencer e a destruir aquela Floresta Sagrada a qualquer custo. Os metamorfos sabiam que a próxima peleja também não seria nada fácil para eles – mas nada, desde sua origem, nunca fora fácil. E eles não podiam querer que, naquela tarde ainda tempestuosa, o que consideravam um forte sinal de vitória vindoura, fosse diferente.



:: conto de Rafael Alexandrino Malafaia ::
:: 05 de março de 2012 ::

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